Uma Chamada Perdida, de Éric Valette
O que sobrou da invasão do J-horror no cinema americano
Eu tinha pavor do cartaz de “Uma Chamada Perdida” quando o filme estreou em 2008. A imagem da fachada, um rosto com o celular na orelha, causava arrepios logo à primeira vista com seus olhos estranhos, que lembravam os de um alienígena. O medo era tamanho que eu evitava aquela face a todo custo. Lembro de desviar o caminho algumas vezes no corredor do cinema, tomando maior distância quando via aquela imagem na vitrine dos próximos lançamentos.
Minha relação com o terror não era das melhores naquele momento. Só me aventurei pelo gênero com 18 anos, quando descobri no medo uma forma de entretenimento. Antes disso, nos anos 2000, qualquer suspense ou susto barato soava como a coisa mais aterrorizante do mundo. Lembro da tensão que sentia com os trailers no cinema. Cenas anunciando filmes como “Jogos Mortais” e “Atividade Paranormal”, por mais tépidas que fossem, alimentavam os meus pesadelos.
Mas o caso de “Uma Chamada Perdida” era diferente, a começar pelo meu completo desconhecimento da premissa. O trailer que ora ou outra encontrava nas telonas investia no mistério, sem entrar em detalhes sobre as misteriosas ligações que atormentavam os personagens.
Se me perguntassem no lançamento o que achava que se tratava o filme, dezesseis anos atrás e sob a influência do cartaz, responderia com uma trama com alienígenas. O impacto do horror era tamanho que eu demorei a entender que os olhos sinistros daquela arte eram na verdade bocas humanas.
Nos dias de hoje, tenho dificuldade em explicar o porquê de tanto medo. Não tenho fobia de extraterrestres —me divirto bastante com os filmes— e tampouco grandes questões com celulares. O longa também desperta poucas emoções. Ele entrou e saiu do streaming outro dia, em uma dessas passagens efêmeras pelo catálogo, e me instigou a um acerto de contas. Para a minha decepção, descobri que o produto vendido por aquele cartaz passava longe do temor despertado pela divulgação.
A história do filme é bastante simples e justifica o mistério do marketing. Um grupo de amigos se vê atormentado por uma maldição que atinge os seus celulares com uma mensagem de voz. Depois da pessoa atender a um toque estranho, a ligação antecipa o futuro trágico de quem atende, revelando em som a sua morte. Um ritual acompanha os assassinatos: uma bolinha vermelha é encontrada com o cadáver, que, antes de ir desta para a melhor, liga em seu celular para a próxima vítima, dando continuidade à maldição.
Mal dá tempo dos corpos esfriarem e os protagonistas perceberem um padrão nas mortes para o espectador de agora ligar os pontos. Sim, “Uma Chamada Perdida” é um remake de outro terror, produzido em 2003 no Japão e com o mesmo nome. A narrativa tem quase o mesmo andamento de um “O Chamado” ou um “O Grito”, incluindo a descoberta de um mal passado nos horrores da trama.
A direção do original está nos ombros de Takashi Miike, hoje um veterano importante da indústria nipônica, mas isso pouco importa. Na Hollywood de 2008, a versão americana existia exclusivamente para tirar uma casquinha da onda do J-horror, que dava os últimos suspiros.
Essa onda soa como um fenômeno estranho, mas foi crucial ao gênero nos EUA desse começo de século. Na longa história do terror japonês, a ascensão do J-horror pertence ao início dos anos 1990, quase em simultâneo à redescoberta da produção geral do país pelo mundo. Mas a sua exportação para o cinema americano começa mesmo na década seguinte, quando o remake de “O Chamado” explode nas bilheterias em 2002. Daí em diante, a produção ganha periodicidade —vieram obras como “O Grito”, “Água Negra”, “Pulse” e, claro, “Uma Chamada Perdida”.
As refilmagens tinham em comum a abordagem seca com o paranormal, transformando histórias de fantasmas em contos brutais envolvendo personagens acuados. Na maioria das vezes, o tal passado amaldiçoado diz respeito a uma família destruída pela tragédia, com a dor mantendo a vítima original se vingando em estado perpétuo. As salas escuras e cheias de vultos também se multiplicam.
Mães e filhos são um xodó dessas narrativas, bem como o caso de “Uma Chamada Perdida”. Mais para frente no filme, descobrimos que a origem das ligações é uma garota que morreu de asfixia, abandonada pela mãe depois de quase matar a irmã —que a amaldiçoou a assombrar os outros.
A invasão do J-horror em terras americanas se confunde com outra da época, a do revival dos slashers, e as duas dividem semelhanças. O retorno dos slashers foi outra onda de refilmagens que imperou no circuito comercial até 2010, e ela priorizava a brutalidade seca para contar de novo as histórias marcantes dos anos1970 e 1980. A fórmula deu certo, desde ícones como Jason Voorhees e Leatherface até clássicos do gênero como “Dia dos Namorados Macabro”.
Imagino que a sensação de repetição fosse o problema maior daquele momento, com a fórmula do remake aos poucos cansando o público. Mas o que me chama a atenção agora é a continuidade desse clima de terror específico, que permanece de uma produção para a outra. Eu não fazia parte do público que frequentava as sessões de horror daquela época, mas até hoje lembro do quanto esse tom soturno, sangrento e monótono me atingia. Mas enquanto o slasher tinha lá a sua expectativa consumada no ato de ver o mesmo assassino mascarado na telona, o enigma do horror japonês refeito pelos americanos trazia um desespero extra, relacionado com o desconhecido.
O interessante desse processo são os elos da corrente. Em Hollywood, o marketing de um filme está sempre atrás do sucesso do outro, em convencer o público de que ele vai encontrar nele uma sensação parecida com o anterior. Os filmes de gênero mais preguiçosos —sobretudo os de horror— tomam esse processo como uma fórmula criativa, em uma emulação eterna. Ou seja, o meu assombro com o rosto do cartaz de “Uma Chamada Perdida” se relaciona com a tensão que já sentia com “O Chamado”, um fenômeno daqueles tempos.
Anos depois, vejo tudo isso como uma grande bobagem. O terror do meu passado não é um bom filme, ainda mais quando já se assistiu “O Chamado” ou produções japonesas como “Cure” e “Audition”. Para piorar, a direção é de Éric Valette, francês que repetia os passos de Walter Salles com “Água Negra” para emplacar uma carreira entre os americanos. Um valete mal usado, portanto, e que depois do filme voltou para o país natal.
De bom, o “Uma Chamada Perdida” hollywoodiano só tem a favor a presença de Ray Wise, ator veterano que se diverte como um produtor de um programa de TV sobre fenômenos paranormais. Nem as mortes funcionam direito —as cenas são picotadas e mal filmadas, tirando boa parte do suspense.
O filme também chegou atrasado. Em 2008, o J-horror nos Estados Unidos já tinha perdido boa parte da sua popularidade, mesmo que rendessem graças aos orçamentos baixos. As pessoas estavam cansadas de ver aqueles tipos de história e se interessaram por fantasmas de outro tipo —penso muito no sucesso de “Atividade Paranormal” nessa hora, um ano antes do lançamento de “Uma Chamada Perdida”.
Aos principais hits, como “O Chamado” e “O Grito”, restou o poço das sequências, que se provaram um desastre de bilheteria e um fracasso de crítica. Os exemplares menos chamativos desapareceram sem deixar rastros. E para mim, restou a lembrança daquele rosto maldito, estampado na porta do cinema, me encarando com o celular na mão e um sorriso no rosto.
“Uma Chamada Perdida” está na seção de compra e aluguel digital do Prime Video e do Google Play.
Esse texto faz parte da série “Achados e Perdidos”. Clique aqui para ler o capítulo anterior.
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Fica a dica: Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos
O dia do cinema brasileiro passou e, com ele, a notícia do volume insano de filmes nacionais que entraram no catálogo da Netflix. A lista é boa e alguns filmes tem cópias melhores, mas aproveito a oportunidade para destacar esse clássico do Nelson Pereira dos Santos que define com uma precisão absurda a essência do Rio de Janeiro. Eu sou mais “Rio, Zona Norte” do diretor, mas “Rio, 40 Graus” tem uma coisa em sua cacofonia de histórias que é intoxicante, ainda mais com um final tão triste —talvez um dos planos mais bonitos do cinema está no desfecho deste filme. A cópia da Netflix é a de sempre, dos anos 2000 e berrando por uma nova restauração do filme, mas as legendas ajudam aqueles que tem ouvido menos afiado e a sessão se impõe acima das limitações técnicas do momento. Para quem não viu, está uma visita obrigatória e nunca foi tão fácil.
Onde? Na Netflix e no Globoplay.