Terra arrasada, casa contaminada (parte 1)
Dos interiores deturpados de Marcas da Violência aos cenários desolados de Django, um olhar sobre como a violência afeta os espaços no cinema
Quem avisa amigo é: além de Django, essa edição tem leves spoilers de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura e O Homem do Norte.
Uma discussão que surge de tempos em tempos no Twitter (e outras redes sociais, claro) é a tal homogeneização do sexo nos grandes lançamentos do cinema norte-americano, em especial sobre como o escopo das relações íntimas deixou de ser um elemento vital das narrativas dos blockbusters para se tornar mero adereço. Muitos não demoram a apontar a ascensão dos filmes de super-herói como paciente zero dessa síndrome do “cinemão” hollywoodiano, mas já há ótimos ensaios que mostram como mesmo no gênero as imagens sexualizadas foram purgadas a ponto de todo mundo ser bonito, mas ninguém ter tesão em cena - uma inversão do lento processo de derrocada do Código Hays, se é para arriscar a metáfora.
Nessas últimas semanas, porém, cheguei a uma conclusão parecida no constante ao uso da violência em tais produções. Claro que os blockbusters mais bem sucedidos são aqueles que se afastam de qualquer gore para encontrar as ditas quatro principais fatias de público da maior arrecadação, mas me parece cada vez mais impossível contornar a noção de que há também uma “limpidez” em tais lançamentos mesmo quando a brutalidade é elemento central da narrativa.
Pincelei isso antes, mas vale relembrar as últimas duas grandes estreias do circuito nacional em suas polêmicas. Elas dizem tudo, afinal: como os acenos sutis de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura a mortes mais grotescas foram entendidos como “riscos sérios” à classificação PG-13 lá fora? E como é que virou uma discussão por aqui o fato de que o gore das matanças de O Homem do Norte parece substituir o sangue pela sujeira mesmo com uma classificação indicativa para maiores de 18 anos?
Essas questões ultrapassam o que é discutido online, porém, e estão inscritas nas próprias trajetórias dos filmes. O estranhamento com o segundo Doutor Estranho é um alerta vermelho não pela contestação em si, mas na forma como mostra que não é preciso muito hoje para chocar o público nessas produções de maior alcance. A violência do filme é mínima e restrita ao campo da sugestão, vide a morte da versão alternativa de Peggy Carter, mas é suficiente para gerar alarde. Já o Homem do Norte faz questão de demonstrar a destruição impressa em suas execuções, é verdade, mas elas também são reduzidas ao campo do estético, em belos travellings que as diminuem como caprichos do panorama construído. O clímax no vulcão, feito no que só pode ser descrito como “o bizarro escuro gerado pelas chamas da lava que brota da terra”, denota essa sobriedade que esvazia a violência para a limpidez do simbólico.
Talvez o caminho mais óbvio a partir daí seja ampliar o raciocínio para o aspecto macro e tentar entender relações na linha “central” do calendário de lançamentos para perceber como esses dois elementos foram reconfigurados a teores mais neutros de entendimento e efeito. Há uma certa verdade aí, aliás: sexo e violência até hoje são grandes chamarizes no audiovisual, mas seu uso parece pertencer agora ao nicho, esgotados após anos de deturpação em direção ao fetiche - dos suspenses eróticos dos anos 90 ao sadismo do horror dos anos 2000. Como o sucesso de 365 Dias na Netflix prova, parece ser tudo sobre a procura direta do assunto e num viés de prazer escondido - algo inacessível para o consumo em massa, mas ótimo para a demanda infinita das plataformas.
Eu poderia filtrar essa percepção pela ótica retrospectiva, glorificando o passado para de certa forma limitar os méritos do presente e, depois, se perder um pouco no processo. Mas confesso que meu interesse hoje é entender melhor como esses elementos são capazes de modelar a narrativa para os fins de seus realizadores, depois de atestada essa noção maior de ferramenta. No caso da violência em si, o que me chama a atenção no momento são as possibilidades que seu uso imprime nos espaços, afetando o olhar do espectador em questão de mundo enxergado e transformado por aquela história.
Deixemos de lado o sexo por hoje, então, e vamos tratar deste uso a partir de dois filmes específicos que não poderiam estar mais distantes em temas e contexto, mas se aproximam neste trabalho de deformação - seja em ambientes externos ou internos. Comecemos pelo de Sergio Corbucci.
Terra arrasada
Django é um filme fascinante e motivos não faltam para isso. Só de contexto, há o lado histórico, de ser um grande sucesso cuja influência se ramifica numa porção considerável dos faroestes spaghetti da época; e há o lado do diretor, cuja carreira se estabeleceu de vez no gênero após seu grande sucesso comercial, permitindo fundamentar um estilo único pautado no cinismo e na violência de narrativas formadas por gramáticas ousadas.
Despido do passado, porém, não é difícil entender o porquê do filme manter reputação própria até os dias de hoje. Django é uma tremenda história de vingança que se imprime em todos os lados de sua narrativa, sendo praticamente impossível não sentir essa perspectiva tanto por uma via materialista quanto onírica. A começar pela abertura, que estabelece sozinha a motivação do protagonista na estonteante canção interpretada por Rocky Roberts e que acompanha Franco Nero de costas enquanto arrasta um caixão por uma estrada toda enlameada, num plano que se revela um zoom ao final.
Essa primeira imagem, um longo plano que termina o percurso destacando o cenário depois de perder-se de vista Django, resume com impressionante exatidão o compasso em que o filme mergulha seu espectador. Estamos diante de uma figura assustadora, é evidente, mas também de um ambiente em que tudo sugere destruição. A canção sugere que o herói da vez busca um acerto de contas munido do sentimento de destruição, mas a partir daí a dúvida que sutilmente se ensaia é sincera: como separar Django daquele ambiente, se ambos se portam como imagens de violência?
Claro que a trajetória do herói em si já elucida boa parte desse mistério, até por estabelecer algum resgate moral na relação de Django com a prostituta que salva no começo da trama, mas, como bom exemplar do cinema de Corbucci, está tudo nítido nas imagens apresentadas. A começar pelo vilarejo que é palco central da história e uma região onde “convivem” os confederados e os mexicanos revolucionários em guerra - uma premissa reaproveitada do Por Um Punhado de Dólares de Sergio Leone, aliás. O filme introduz Django e o público através de uma entrada espiritual a esse espaço, um cenário onde uma frágil ponte atravessa um grande poço de areia movediça em que descobrimos a personagem de Loredana Nusciak ser tanto chicoteada pelos revolucionários quanto quase crucificada pelos confederados. Quando o corpo de um dos confederados vai parar no poço, entendemos de imediato o quão inóspito é aquele lugar.
Esse sentimento geral de destruição se reflete também no vilarejo. Conforme e depois que Django e a prostituta chegam ao bar no centro da cidade, o espectador é apresentado ao mundo daqueles personagens, onde se vê lama para todo lado e as casas e estruturas sugerem o fúnebre aonde quer que se veja, das madeiras podres às estacas que parecem formar cruzes nos ângulos certos. Como um grande campo de batalha, a morte está em todos os lados, uma noção que se sacramenta depois que as ações de Django resultam num massacre pelas mãos de sua metralhadora.
(Nessa hora vale a curiosidade: a lama provém de uma mudança de planos. Diz a história que Corbucci queria fazer um faroeste na neve, a fim de colocar de cabeça para baixo o gênero e fazer uma espécie de filme reverso em cima dessas histórias tipicamente americanas, mas o tempo da época das filmagens só lhe permitiu trabalhar a produção em um cenário enlameado. Embora o diretor tenha conseguido materializar seu sonho dois anos depois com O Vingador Silencioso, num desses atos que reforça seu interesse de refazer percursos, Django atinge essa premissa com o cenário que lhe é imposto.)
Essa perspectiva é realçada também nos poucos momentos em que a narrativa escapa da cidade, o que na prática são apenas duas situações. A primeira é a cena em que se apresenta o chefe dos confederados de Eduardo Fajardo em suas terras, onde durante a prática de assassinar mexicanos por esporte vemos as vítimas tentando escapar num espaço menos hostil, uma ladeira onde se avista algum sinal de vida nos poucos gramados. Seria uma contraposição linda se não fosse a armadilha perfeita, uma isca de liberdade que só aprofunda a crueldade das mortes.
Também vê-se gramados no segundo momento, a grande cena de ação do segundo ato que acontece no acampamento do exército mexicano. As nuvens negras no horizonte prenunciam o ataque que transcorrerá nos próximos minutos, mas nesse momento Corbucci também estabelece um respiro em um espaço ameaçador ao protagonista, o que é uma jogada interessante dado o teor do desvio e sua importância para a trama.
Também é interessante perceber como os espaços não só são afetados pelo clima de violência da cidade, mas pouco se transformam ao longo da história. O melhor exemplo é o saloon, que concentra toda a estética barroca do filme em seu ambiente e pouco muda nas três situações em que se apresenta - da chegada de Django, da volta dos revolucionários e do clímax final. Aberto ou fechado para negócios, o estabelecimento se mantém atraente em sua derrocada, como um lugar consciente do fim desde o primeiro momento em que os personagens põem o pé ali.
Posto tudo isso, voltemos ao cerne da questão: o que diferencia esse cenário de morte do “mocinho”, que literalmente chega ao local arrastando um caixão? Corbucci mantém muito do norte do longa nesse conflito, e ajuda muito nessa hora perceber os ecos de Por Um Punhado de Dólares no roteiro. É a mesma situação de um agente externo indo e vindo entre duas partes em guerra, mas aqui temos do começo um protagonista com uma missão já estabelecida, mas nunca manifestada frontalmente na trama depois da abertura - Django até cita sua perda por alto em um ou dois momentos, mas suas ações são seu maior discurso. E se a premissa é a vingança, ela se desenrola mesmo no viés do oportunismo, no ato de prejudicar as duas lideranças maiores - o massacre do exército e o roubo posterior do ouro no lado confederado, a traição dos revolucionários antes que estes façam o mesmo.
A questão é que nesses movimentos todos Django se compromete, com a vingança se misturando também com a oportunidade do lucro fácil, e aí que o cenário desolado molda o jogo narrativo. Além do acaso do roteiro onde o ouro se perde depois que um tiro acidental de sua arma assusta o cavalo da carroça - e com isso o caixão cheio do dinheiro afunda na areia movediça, uma imagem forte - o longa não hesita de sujar o rosto e as roupas de Franco Nero nesse momento de derrocada, representando os ideais combalidos conforme ele vê a vitória afundar, uma mulher que o ama ficar à beira da morte e suas mãos serem comprometidas. É uma via-crúcis completa e com direito à imagem de Django se agarrando a uma sepultura em forma de cruz no standoff final, mas que vem para completar a rota de aniquilação de todas as partes perante o massacre dos mexicanos e a derrota dos confederados.
Há vários grandes momentos nesses últimos vinte minutos, mas o que me chama a atenção é o rosto de Nero nessas condições. Dos três frames abaixo, por exemplo, é marcante o segundo momento, em que vemos de perto a cara suja de lama e com olhar fixado na personagem de Nusciak, que só reforça o peso dos últimos passos de sua jornada no filme - mesmo que ele vá sobreviver ao confronto.
Essa noção do espaço que “se vinga” da vingança do personagem é tão importante ao filme que acaba por nutrir um papel fundamental no último plano de Django, a longa tomada que começa pegando de cima o herói diante da cova que lhe serviu de proteção e termina na sua saída do cemitério. Com tantas cruzes ao redor, Corbucci desenha nesse final uma saída do inferno para Django, sobretudo da morte que deixa para trás com a pistola na cruz - sabiamente deixada em primeiro plano, aos olhos do espectador, e vista de longe uma última vez por ele no plano antes de deixar o local. Entre Django e a arma, apenas uma cruz está no caminho dentro da imagem vista pelo público.
Em síntese: se Django começa com a imagem quase onírica do homem que puxa um caixão para onde vai, faz sentido que seu fim seja também a imagem praticamente abstrata do homem que deixa a morte para trás.
Na próxima edição…
Três meses de newsletter e sigo ótimo para errar feio o tamanho dos temas que trato por aqui, risos. Na próxima semana a gente continua de onde paramos e vamos fundo no Marcas da Violência, numa parte 2 dessa edição que vai fundo em como o jogo de interiores é crucial para tornar o filme de Cronenberg na obra prima que é.
Até lá.