Eu buscava algo para assistir no fim da noite quando encontrei o filme “Roubando Vidas” na minha lista do Max.
Aconteceu há alguns meses. Tenho o hábito de vasculhar os serviços de streaming aos sábados, quando não tenho nada marcado e posso ficar em casa. No geral fico com os lançamentos, que as plataformas impulsionam e colocam no menu inicial tão logo acessamos o aplicativo. Eles atendem a demanda específica da preguiça e vencem pela inanição, pontos que se tornam qualidades nas noites mais calmas do fim de semana.
Daquela vez, porém, eu estava afim de outro programa, mesmo que seguindo os mesmos passos de sempre —o que também é uma rotina. A televisão, ao contrário do cinema, é um grande ato de preguiça enquanto programa noturno. Se antes perdíamos tempo trocando de canal em busca do que ver, hoje passam-se horas enquanto lemos as sinopses dos catálogos do streaming. O ritual é o mesmo para todos. Abrir o aplicativo, acessar a lista pessoal, rolar o cursor para lá e para cá… tudo à procura de algo que satisfaça a necessidade da hora.
Com “Roubando Vidas”, o que me instigou a apertar o play foi Gena Rowlands. A atriz hoje tem o seu legado ligado quase que inteiro ao marido, o diretor John Cassavetes, com quem fez alguns dos filmes mais belos da história. Mas o resto de sua carreira permanece mais ou menos na surdina, muito porque os projetos variam em qualidade. Longe do status de grande estrela, Rowlands trabalhava primordialmente para pagar as contas. O gosto pela arte estava nos filmes independentes de Cassavetes, morto no fim dos anos 1980.
Para quem ama essas obras da dupla, porém, a ideia de ir atrás desses outros trabalhos vira uma oferta irresistível. Se hoje é difícil imaginar Rowlands longe de Cassavetes no cinema, as produções nos arredores desse casamento revelam mais da sua versatilidade de atriz. É como conhecer outras facetas de uma pessoa. Sob diretores prestigiados, ela surge como uma artista diferente, seja de protagonista incandescente —em “A Outra”, de Woody Allen, ou “Memórias”, de Terence Davies”— ou como uma coadjuvante discreta —os casos de “Uma Noite sobre a Terra”, de Jim Jarsmuch, e “Um Golpe Muito Louco”, de William Friedkin, são emblemáticos.
Mas em algo como “Roubando Vidas”, suspense policial da linha de produção da Warner Bros., Rowlands cumpre outra função, relacionado com as regras silenciosas da indústria. No lançamento do filme, a atriz tinha 74 anos, uma idade em que os estúdios já encaram os artistas como veteranos de luxo. Nos minguantes papéis que conseguia, ela fazia mais e mais a coadjuvante nobre, que acima de tudo engrandece a história, dando-lhe verniz só de estar ali presente.
Rowlands ocupa um papel bem pequeno na trama de “Roubando Vidas”, fazendo a mãe de um assassino em série que ela julgava estar morto há 20 anos. A matriarca logo se torna parte fundamental da investigação e, também, da história. Depois do prólogo, o filme já começa com ela depondo na polícia que esbarrou no filho vivo durante uma viagem de navio.
Não dá para afirmar que a história seja lá instigante, mesmo com as suas tantas surpresas, e no contexto da época nota-se bem o quanto o filme reage ao mercado. Lançado em 2004, “Roubando Vidas” ainda queria reproduzir o sucesso de “Seven”, filme de 1995 que era outro suspense policial cheio de reviravoltas envolvendo psicopatas bizarros. A direção de um então iniciante D.J. Caruso copia de forma desengonçada o estilo sóbrio de David Fincher, e mesmo os créditos iniciais parecem copiados do hit com Brad Pitt e Morgan Freeman.
O elenco também, ao seu jeito, entrega o quanto o projeto foi montado pelo estúdio. O papel da investigadora, por exemplo, fica com Angelina Jolie, que lutava para firmar a carreira nos filmes de ação quatro anos depois de ganhar o Oscar. Os principais suspeitos são vividos por Ethan Hawke e Kiefer Sutherland, atores na busca por um espaço em Hollywood após alguns sucessos —o primeiro em “Dia de Treinamento”, o segundo com a série “24 Horas”. Mesmo em papéis minúsculos do longa você pode encontrar alguém como Paul Dano, que vive o assassino na juventude.
Da parte de Gena Rowlands, porém, o longa até que corre bem. A sua participação é ínfima, resumida a três momentos de exposição —o depoimento, a conversa com a protagonista e o encontro com o filho maldito. Em todas essas cenas, a atriz dá dignidade a sua personagem, procurando fragilidades na mãe que reencontra a cria em circunstâncias nada agradáveis. Essas vulnerabilidades ajudam ela a dar vida ao que é uma mera engrenagem de um roteiro escrito por diversas mãos.
Pequenos ganhos como esse são a essência da rotina de ver filmes. Em especial os péssimos, como é o caso desse “Roubando Vidas”. O bom entretenimento ruim no cinema existe nos motivos rarefeitos que inventamos para continuar assistindo a aquilo, em uma busca por sentido que poucas vezes revela qualquer nexo. Ao invés de abandonarmos o filme, nós continuamos a assisti-lo, e há um prazer silencioso nisso.
(Nessas horas, quando se discute os filmes fracos, muitos argumentam que a análise do crítico faz bem para entender o que pode ser corrigido. Eu discordo. Há algo primitivo nessas sessões que escapa da mera correção de mercado, e o bom crítico sabe como levar isso em conta.)
Por isso mesmo, acho interessante a naturalidade com a qual as plataformas de streaming hoje se abastecem destes filmes. Em especial os dos anos 2000, que ainda não carregam a aura de nostalgia ou de importância das obras do século 20. Nas inúmeras entradas e saídas de um catálogo, eles se tornam a munição ideal para a indiferença. A famosa segunda tela, onde checamos e-mails e as notificações das redes sociais, presumem uma primeira, ao fundo.
A sensação de bucha de canhão é notável, da Netflix à Mubi, da Max ao Prime Video. Nós nos acostumamos a ignorar esses títulos, e na era dos serviços esses filmes só servem de figuração ao lançamento da semana. Para quê assistir ao passado que já superamos, o algoritmo parece perguntar, se o presente se mostra mais interessante que isso que apresento? A ideia é maligna e presume uma psicologia reversa e cruel.
O que é um estímulo ruim, contrário à descoberta e à curiosidade que fazem do cinema uma arte que instiga. Precisamos combater isso, mesmo que seja apenas para evitar que o lixo de ontem desapareça no dia de amanhã.
Por isso, continuo a rolar o cursor na TV para lá e para cá.
“Roubando Vidas” está disponível na Max.
Estou de volta e não sei por quanto tempo. Por aqui, espere resenhas, artigos e até algumas séries, sempre com o cinema em vista. Sempre semanal, sem uma agenda programada. Discussões são muito bem vindas.
Isso, pelo menos, até que o mercado de trabalho chame de novo. Aos que por ventura se interessarem, o e-mail é o mesmo do remetente dessa publicação. A lojinha está aberta, pode entrar.
Fica a dica: Troca Surpresa, de Kiran Rao
O sucesso no Festival de Cannes de All We Imagine as Light —primeiro indiano da seleção oficial em 30 anos, dirigido ainda por uma mulher, Payal Kapadia— me levou a tirar da fila este pequeno sucesso do circuito comercial do país que vem acumulando elogios na comunidade do Letterboxd. O filme de Kiran Rao —ex-esposa do ator e produtor Aamir Khan, que viabiliza o projeto por seu Aamir Khan Productions— é uma comédia bem simples, que acompanha duas mulheres recém-casadas que, em 2001, acabam trocadas por um dos maridos no caminho para a sua nova casa. Ele tem um quê de melodrama com pitadas de chanchada, mas no decorrer de muitas confusões desenrola os obstáculos de ser mulher na Índia contemporânea. Enquanto uma das protagonistas (a que foi confundida) quer fugir de um casamento arranjado para estudar, a outra (a que foi esquecida) vai trabalhar em uma venda de chá com uma mulher que nunca casou. O filme tem suas limitações —sobretudo quando pesa a polícia como salvadora da pátria—, mas encanta nesse cuidado com as personagens.
Onde? Na Netflix.