Não são poucas as vezes no filme “Rivais” em que a bola de tênis quase colide com a câmera. O efeito deve levar muita gente a mexer a cabeça ou a fechar os olhos no cinema, porque a sensação nesses momentos é de que a bolinha amarela ultrapassará o limite da tela e invadirá a sala, agredindo sem querer o espectador alheio.
A intenção do filme parece ser essa mesma, ainda que a canastrice do efeito esteja mais próxima das cenas em 3D de um filme dos anos 1950. Uma boa comparação é o “Museu de Cera”, terror de 1953 com Vincent Price. Quem assistiu ao filme deve lembrar do homem batendo a bola com elástico em direção à câmera, em um momento divertido justamente pela ingenuidade com que se encarava uma tecnologia nova. Era uma experiência nova e instigante, feita para atrair o público da época com óculos de papelão e lentes azul e vermelha.
Deixados os óculos de lado, o jogo de “Rivais” lembra muito aquele que Price e o diretor André De Toth se submeteram ali. Experiência é a palavra do momento em Hollywood, adjetivando filmes que oferecem aquele “algo a mais” que define a escolha do público do que assistir. É uma noção bem velha, implícita na indústria desde os tempos de D.W. Griffith, mas que agora deixa de ser abstração e ganha corpo nos estúdios.
Nesse ponto Hollywood parece um pouco melhor que antes porque a indústria pelo menos dá indícios de que quer alguma variedade. Depois de uma década buscando franquias e inovações como lucro garantido, há agora um pouco mais de espaço em Hollywood para algo único, mesmo que testado e aprovado.
Se o cinema americano vive agora uma era da comodificação do inusitado, da venda de uma experiência nova e nem tão desconhecida, a notícia é ótima para Luca Guadagnino, o diretor de “Rivais”. O italiano ganhou os holofotes em 2017 com “Me Chame pelo Seu Nome” e passou a última década como mão de obra “diferenciada” de Hollywood. Só nesse período ele cuidou de dois remakes, “Um Mergulho no Passado” e “Suspíria”, adaptou mais um livro, “Até os Ossos”, e até dirigiu uma série para a HBO, “We Are Who We Are”. Mesmo assim, Guadagnino de alguma forma preservou a sua posição na indústria, se mantendo aos olhos do público e da indústria como uma voz original e, quem sabe, única.
O timing de “Rivais” não poderia ser melhor, portanto, e serve ao diretor como demonstração de todas as suas habilidades que são mais valorizadas pelos estúdios nos dias de hoje. Nesse ponto, ajuda que o filme seja um parque de diversões imenso para Guadagnino, com todos os elementos que ele vende a uma década como o seu cinema. De jovens à flor da pele a uma premissa cheia de sutilezas e embebida casualmente na sensualidade, tudo que Guadagnino busca em seus filmes está exposto na tela.
De novo, a experiência “Rivais” oferece pouco além do desejo palpitante. O filme trata de um triângulo amoroso nutrido entre jovens tenistas, que tem as suas carreiras definidas pelo tesão de um pelo outro. O ponto inicial, que também serve de clímax, é o confronto entre os dois homens da relação (Josh O’Connor e Mike Faist), antigos amigos que se encontram nas quadras após passar anos separados. Os dois brigam no fundo pela mulher da relação (Zendaya), uma jovem tenista aposentada e agora empreendedora de um dos dois. O jogo que disputam pode ser apenas a final de um torneio menor de tênis, mas o que se impõe no campo é o passado, entre suas escolhas e suas consequências.
A história se desenrola então nas idas e vindas do tempo, do momento em que os garotos conhecem a moça até a tensão da partida no presente. A narrativa também é montada de acordo com a final, e letreiros informam o espectador dos sets para aumentar a tensão dos flashbacks. O jogo, enquanto isso, aumenta o nervoso entre os tenistas a cada game. A lógica do roteiro é um imenso exibicionismo, portanto, o que faz sentido se considerar que o autor, Justin Kuritzkes, é um estreante.
Guadagnino floreia a trama como pode, enquanto isso. O diretor usa e abusa de recursos como montagens paralelas, cenas em slow motion e closes nos rostos e corpos suados dos protagonistas. A boa trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, calcada na música eletrônica, irrompe na tela sem o menor comedimento, forçando fricção mesmo em momentos mais calmos. Sobra até para Caetano Veloso, que de repente embala uma discussão de casal com uma canção na íntegra.
Em outras palavras, o filme existe tanto na tensão que ela ultrapassa os limites da narrativa. Roteiro e direção propõe andamentos diferentes à ação e essa discrepância fica nítida conforme “Rivais” avança em direção ao desfecho.
Nesse sentido, a premissa pode ser o de uma final de campeonato, mas o longa funciona como um imenso jogo de exibição entre Guadagnino e Kuritzkes. Entre eles há o elenco, que orbita na quadra em função das demandas de cada parte —elas até coincidem muitas vezes, mas com o tempo se esbarram mais.
O barato é que esse choque funciona em favor do filme por boa parte do tempo, o que talvez tenha a ver com a tensão do cenário. O tênis é um esporte que presume dois lados adversários na disputa pelo controle do jogo, um objetivo traçado e alcançado pelo vai e vem da bola. O ritmo define vencedores e perdedores, independente de quem o estabelece, do quanto dura a partida e da velocidade —muitas vezes feroz— dos jogadores. Essa hierarquia impõe paciência fria à tensão quente do esporte, o que diferencia o tênis de outras modalidades —a sua sedução é sobretudo racional, do domínio dos instintos primitivos, e qualquer rixa dá munição para o andamento do bate e rebate.
Dentro dessa lógica, “Rivais” existe para duas ideias diferentes e que não concordam entre si. A primeira, da parte de Kuriztkes e mais a ver com a história, é fazer do embate dos tenistas um elemento do relacionamento nutrido entre eles. Essa percepção ajuda o roteiro a se estender para além das partidas e faz mais sentido para tornar os personagens instigantes ao público. Ninguém na plateia recusa um bom drama, afinal, em especial os de cunho amoroso. O problema nessa hora é que o tênis em si fica de lado, o que dificulta o filme mais para o fim, quando o equilíbrio do esporte e do drama é bem mais tênue.
Já a outra ideia em movimento no filme envolve tornar o espectador em uma parte da partida, elegendo um personagem para tal. A eleita, no caso, é a tenista vivida por Zendaya, que no presente só tem como observar os jogadores e influenciar o jogo pelo olhar. A sua posição é a do voyeur, o que faz sentido se considerar que a sua carreira frustrada no tênis envolve também projetar nos garotos os seus impulsos.
Se pudesse apostar, diria que essa decisão foi tomada por Guadagnino, porque ela prejudica o andamento da trama de Kuritzkes. Ela tem mais a ver com uma ideia elementar de cinema, uma arte sobretudo de observação, e sabota o equilíbrio do triângulo amoroso da história, que aos poucos minimiza a agência da mulher. O sacrifício, porém, ajuda a reorganizar a narrativa em favor dos dois homens, além de oferecer algum retorno imediato na atuação de Zendaya —que produz o filme. O público também é obrigado a voltar as suas atenções para a tensão do jogo, o que em tese é uma vantagem.
Na prática, porém, a reta final se torna um pequeno engodo de intenções. Como as obsessões dos jogadores, “Rivais” explode de uma forma estranha no clímax, se rendendo aos prazeres estéticos dos planos fechados e da câmera lenta como se só eles pudessem explicar o que acontece entre os três. A experiência se impõe aos trancos e barrancos, como se quisesse traduzir o gozo daqueles personagens com tudo ao redor —por eles mesmos, pelo esporte, por vontades declaradas e principalmente não declaradas.
Uma lógica bastante furada e, se permitem o trocadilho, equivalente à de um rally de tênis que termina murcho com uma bola na rede. A boa notícia é que o prazer da disputa até ali se mantém intacto. Despido de qualquer noção de experiência, ver os jogadores correndo atrás da bola e mantendo o jogo vivo tem ainda o seu prazer.
“Rivais” está nos cinemas.
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Isso, pelo menos, até que o mercado de trabalho chame de novo. Aos que por ventura se interessarem, o e-mail é o mesmo do remetente dessa publicação. A lojinha está aberta, pode entrar.
Fica a dica: A Corte Marcial do Navio da Revolta, de William Friedkin
O último filme de William Friedkin saiu no streaming daqui de forma tão minúscula que por um momento acreditei que ele poderia ser melhor abraçado pelos brasileiros por isso. Ledo engano, o longa conseguiu ser ainda mais ignorado que na época do lançamento nos Estados Unidos.
A boa notícia é que “A Corte Marcial do Navio da Revolta” continua a ser um trabalho final excelente para um cineasta brilhante. O filme é outra adaptação de uma peça pelas mãos do diretor, dessa vez uma baseada no livro escrito por Herman Wouk —“The Caine Mutiny”, que por sua vez já virou filme com Humphrey Bogart (“A Nave da Revolta”). A trama, como o título aponta, se concentra no julgamento militar de um motim de um navio, com um advogado (Jason Clarke) diante da tarefa quase impossível de inocentar os marujos. Mas o caso, aos poucos, mostra que nem tudo é o que parece.
Friedkin para sempre será lembrado por “O Exorcista” e os filmes policiais e de suspense dos anos 1970 e 1980, mas ouso afirmar que as adaptações de peça que fez para o cinema revelavam melhor os seus talentos de diretor. Este longa faz justiça ao argumento. A sensação constante é de uma panela de pressão, com a noção da passagem do tempo se perdendo no desfile de testemunhos nervosos do caso. O elenco está afiado, liderado pelo personagem cético de Clarke e o capitão do navio, vivido por Kiefer Sutherland com a intensidade de mil sóis —ele conduz a melhor cena do filme. Há ainda mais uma atuação de despedida de Lance Reddick, que faz um dos juízes do julgamento. De quebra, Friedkin reorienta o material de uma forma perniciosa aos dias atuais, com direito a um desfecho que faz jus a sua trajetória raivosa por Hollywood.
Onde? No Paramount+.