O fim de Batgirl é o fim do streaming? E outras sandices
A resposta curta é não, mas há uma mudança em curso. E a agenda de lançamentos de agosto!
Vamos fazer um exercício rápido de imaginação. Imagine que você tenha em mãos um filme de super-herói na pós-produção e relativamente barato, estrelado por um personagem relativamente conhecido e bastante ligado a outro que é sinônimo de vendas - o qual por sua vez marca presença na história em sua encarnação mais conhecida. Além disso, o projeto tem na direção nomes responsáveis pelo maior sucesso comercial de Hollywood no famigerado ano de 2020 e ainda inclui no elenco dois artistas bastante populares (um inclusive com um Oscar), além de uma atriz transexual que desperta simpatia entre o público. Por fim, a protagonista do seu filme é latina, em mais um passo de diversidade que já diversas vezes seu potencial financeiro.
A única questão que você tem com um projeto desses envolve distribuição: o longa de início foi pensado para estrear direto no streaming, com o orçamento menor viabilizando alimentar de maneira rápida e eficiente a audiência de um serviço que você trabalha há dois anos. Mas você percebeu que vale mais a pena lançar suas produções primeiro nos cinemas ao invés do digital, e numa época em que todo lançamento do gênero está na altura dos 200 milhões de dólares, um filme com menos da metade desse custo pode não encaixar direito na máquina - e no processo justificar um investimento extra em publicidade que vai dobrar a grana depositada na produção.
Qual o melhor caminho então: manter a estratégia original com o streaming ou arriscar uma estreia nos cinemas?
Essa em tese foi o problema que se apresentou na mesa de David Zaslav nas últimas semanas. Haviam outros projetos no meio, mas o filme que parecia ser a dor de cabeça do CEO e presidente da Warner Bros. Discovery era mesmo o Batgirl de Adil El Arbi e Bilall Fallah, que vinha como espécie de alternativa para ramificações rápidas e eficientes das propriedades da “joia da coroa” DC Comics enquanto envolvendo o HBO Max no processo.
A solução não foi os cinemas ou o streaming, porém, mas um terceiro caminho que ninguém até então cogitava sequer existir: o cancelamento. Mesmo depois de 90 milhões investidos e com apenas os efeitos visuais para se finalizar, a produção estrelada por nomes como Leslie Grace, Michael Keaton e Brendan Fraser foi devidamente desligada essa semana.
A realidade foi outra, mas ainda indicativa de que algo mudou em Hollywood nas últimas horas - e Batgirl seria o ponto zero disso.
Em outras palavras, foi uma semana difícil.
“Correções agressivas de curso”
A notícia do fim prematuro de Batgirl disparou todo tipo de alarme na indústria e nas redes sociais, mas em meio ao que só pode ser classificado como derretimento mental em múltiplas versões se faz necessário lembrar que este não foi um movimento isolado dentro da Warner. Digo, faz todo sentido o papo de que agora Zaslav é apelidado de “Zaslav the Butcher” (ou Zaslav, o Açougueiro) nas DMs de Hollywood, mas estamos muito longe de desesperos como que o HBO Max seria encerrado e incorporado ao Discovery+ - ou birutices piores como que o estúdio estaria considerando cancelar o Não Se Preocupe Querida de Olivia Wilde (sim, aconteceu).
Todo o furacão dessa semana deriva única e exclusivamente da fusão da antiga WarnerMedia com o Discovery+, anunciada em maio do ano passado em meio à compra da primeira pela segunda. Depois de quinze meses de trabalho, a Warner Bros. Discovery fez a sua primeira reunião com acionistas enquanto novo conglomerado na quinta-feira passada, 4 de agosto, e confirmou ao mundo algo que já era mais ou menos esperado: a companhia perdeu dinheiro no último trimestre, exatos 3,4 bilhões de dólares, mesmo mantendo a base de assinantes de tanto o Max quanto o Plus em franco crescimento. Isso mesmo depois de precisar desconsiderar 10 milhões de contas da matemática, uma perda relativamente alta.
Ou seja, a conta não fecha, e Zaslav vê nisso uma questão de desespero derivada única e exclusivamente de seu antecessor - e portanto precisa fazer o oposto do que vinha sendo feito. Antecessor no cargo, Jason Kilar acabou se tornando um bode expiatório perfeito na Warner pós-AT&T por representar uma mentalidade interessada demais na atualização do conglomerado perante o advento da Netflix; do lançamento do Max à decisão drástica de lançar todas as produções de cinema do estúdio em 2021 em formato híbrido com o digital, a lógica do executivo não era tão diferente assim da mentalidade de Hollywood no momento em que a “gigante vermelha” ameaçava botar todas as companhias no asilo ao introduzir um novo modelo de distribuição.
Foi sob a tutela de Kilar inclusive que a empresa por um momento cogitou algo impensável até então, de reduzir pela metade o número de estreias nas telonas da Warner para aumentar a quantidade de filmes originais do Max. Só de Steven Soderbergh foram três longas-metragens inteiros pra plataforma, é bom lembrar, e isso era só o começo - vide o investimento em projetos como Batgirl, a sequência de Scooby! e o filme solo dos Super Gêmeos, feitos todos com o público da plataforma em mente e agora cancelados.
Esse jogo de cintura acontecia também pelas mãos da AT&T, porém, e é aí que entra uma distinção importante na passagem de bastão do comando do estúdio. Enquanto Kilar era um CEO pensado pelo mercado de tecnologia, vindo do comando do Hulu e com foco no desenvolvimento rápido da HBO para a era do streaming (bom lembrar, antes do Max tínhamos o Go!), Zaslav já é um executivo que entra pelo lado da Discovery, comandando uma companhia com pé fincado na produção em massa de conteúdo e com uma cabeça mais tradicional. Não é à toa, então, que ele veja na administração anterior a antítese de tudo que deveria ser feito com a Warner Bros., ainda mais num cenário onde a estratégia de negócios se parece mais e mais com a “sangria” desenfreada do investimento no streaming - o tal do “vamos gastar agora que mais para frente os lucros retornam em dobro” que a Netflix agora é tão bombardeada por fazer desde… sempre.
O interessante aí é que a resposta de Zaslav foi realmente MUITO forte contra tudo isso que tá aí. Uma frase que se destaca nessa primeira reunião com acionistas da WBD é a resolução de “correções agressivas de curso” para colocar a companhia no bom caminho, uma afirmação que pressupõe acima de tudo uma estratégia de reparações. As falas fortes continuam: “Nós demos um reset e estruturamos o negócio” em relação à DC Films; “Nós não estamos nesse negócio para conseguir novos assinantes, mas fazer dinheiro” sobre aventuras impensadas no streaming; e claro, a famigerada declaração “Nós não vamos lançar um filme a não ser que possamos acreditar nele” quando para lidar com a decisão de desligar Batgirl.
Se tudo isso não basta, vale a informação de que o CEO escolheu só homens brancos para ocupar os cargos de liderança da nova companhia e que a reunião de quinta contou com este slide, já tornado infame nas redes:
É divertido pensar nessa hora no filme do Flash que a Warner diz acreditar tanto apesar dos problemas midiáticos com Ezra Miller continuarem perturbando a estratégia de lançamento (quem foi ver o Batman de Robert Pattinson lembra do compromisso de estrear a produção este ano), mas toda essa posição assumida por Zaslav pressupõe também comedimento para fazer dar certo seu negócio. O CEO quer cortar despesas e essa é sua maior prioridade no momento para viabilizar o futuro, seja quais forem as consequências. Ao seu ver, faz todo sentido então acabar com um filme na pós-produção para garantir um abatimento de imposto de 20 milhões de dólares, ao invés de bancar a aposta seja em qual modelo for - até porque isso agora representa gastos, mesmo se a produção depois retornar 3 ou 4 vezes mais o seu valor em bilheteria. Por essas e outras, não me surpreende que já há rumores de que o estúdio volte atrás na redução da janela de exclusividade de seus filmes nos cinemas.
Mais preocupante que isso, porém, é a tal decisão de remover filmes originais do HBO Max para chegar ao mesmo fim do abatimento de imposto. Os fins prematuros de Convenção das Bruxas, An American Pickle, Confinamento, Superinteligência, Nossos Sonhos de Marte (nem 3 meses depois do lançamento) e do coitado independente Charm City Kings expõem de vez uma máxima que muitos remeteram ao artigo de Martin Scorsese na Harper Magazine, mas que está há muito tempo pingando em todas as discussões sobre “o futuro do cinema está no streaming”: a concentração de toda a história de uma arte a uma dezena de plataformas não é boa para ninguém, pois no fim das contas a regra do jogo é sempre o dinheiro - e o capitalismo não se interessa por preservação, mas lucros.
O que acontece agora é que essa percepção só fica mais evidente, conforme todos os conglomerados começam a entender que ser a Netflix não é um caminho viável. Estamos diante de um cenário de comedimento no mercado de streaming, como analistas já comentam, e para além da redução na produção é importante perceber que até mesmo os catálogos estão na mesa quando o assunto são cortes. A boca do funil existe e está próxima.
Para evitar o tom soturno nesse fechamento, porém, acho válido retornar ao gatilho de todo o caos para um comentário de maior corpo presente. Convenhamos, a maior vítima do fim de Batgirl foi mesmo Leslie Grace.
Calendário
Cinema
É na ressaca das férias da criançada que os adultos se consagram. Abrindo de vez o segundo semestre de 2022, o mês de agosto chega com alguns bons destaques nos cinemas brasileiros, formado majoritariamente por filmes que chegam atrasados ao circuito - incluindo um MUITO grande. São eles:
Tralala (4), musical francês com Mathieu Amalric que passou por Cannes ano passado;
Trem-Bala (4), a nova tentativa de David Leitch para achar vida após John Wick;
X - A Marca da Morte (11), o terror de Ti West que chega aqui a tempo de ver o lançamento do prelúdio no exterior;
Clara Sola (11), o bastante elogiado representante da Costa Rica no Oscar deste ano;
A Fera (11), o novo filme de ação de Idris Elba (agora na selva?);
Luta Pela Liberdade (18), thriller de época de Zhang Yimou;
Um Pequeno Grande Plano (18), filme dirigido por Louis Garrel;
Onoda - 10 Mil Noites na Selva (25), espécie de épico de Arthur Harari;
e Não! Não Olhe! (25), o novo trabalho de Jordan Peele que chega ao país um mês depois do lançamento nos EUA.
Além do circuito comercial, vale o aviso pra quem é de São Paulo que o CineSesc está promovendo uma mostra de Pier Paolo Pasolini até o dia 17, enquanto o IMS vai exibir Cão Branco de Samuel Fuller nos dias 25 e 28 deste mês. Sessões imperdíveis!
Amazon Prime Video
Com a série de O Senhor dos Anéis virando a esquina, faz algum sentido que a Amazon este mês esteja mais magra do que nunca em termos de novidades. De catálogo há praticamente nada de interessante (a não ser que você seja grande entusiasta da animação Sing, claro), enquanto os lançamentos de cinema se reduzem a dois títulos:
Treze Vidas (5), a cinebiografia do resgate das crianças tailandesas da caverna por Ron Howard;
e Samaritano (26), o filme de super-herói que Sylvester Stallone escolheu para chamar de seu (e com o diretor de Operação Overlord no comando!).
Disney+/Star+
Outro conglomerado com estreias reduzidas este mês é a Disney. Tudo bem que há séries a rodo chegando depois de alguns meses de atraso (Atlanta! Abbot Elementary! Pistol!), mas nos filmes a situação se resume a dois títulos:
Lightyear (3, Disney+), que chega ao streaming depois de fracassar de leve nas bilheterias;
e O Predador: A Caçada (5, Star+), o novo capítulo da franquia que inexplicavelmente foi parar diretor nas plataformas.
Fora isso, vale destacar as chegadas de Jerry Maguire: A Grande Vitória (19), Downhill (19), Depois da Terra (19) e O Ataque (26) no Star+ ao longo do mês, bem como a minissérie Em Nome do Céu (10) que enfim aparece por aqui - dirigida por David Mackenzie e com episódios comandados por Isabel Sandoval!
MUBI
Mês carregado de lançamentos pra MUBI este agosto. São nada menos que cinco títulos inéditos de destaque aparecendo na plataforma:
Memoria (5), lançado duas semanas depois de fazer passagem pelo circuito comercial;
Faya Dayi (10), bastante recomendado filme de Jessica Beshir;
The Humans (12), a adaptação para o cinema da peça homônima que ganhou o Tony há alguns anos (e com o autor à frente da direção);
Babysitter (19), nova aventura na direção de Monia Chokri, atriz muito colaboradora de Xavier Dolan;
e A Chiara (26), o muito interessante segundo longa-metragem de Jonas Carpignano.
Além disso, temos de fundo de catálogo A Lei de Quem Tem o Poder (3) de Bertrand Tavernier, o Ciganos da Ciambra (11) de Jonas Carpignano, o Caprice (13) de Joana Hogg, o Bob (16) de Melville, Abril (17) e O Quarto do Filho (20) de Nanni Moretti, Nada É Para Sempre (21) de Robert Redford, o Conto de Verão (24) e O Conto de Inverno (25) de Rohmer e A Espada do Imortal (27) de Takashi Miike.
Netflix
Sandman certamente é o grande lançamento da plataforma neste mês, mas para um mês de ressaca de férias a Netflix até que vem tímida nos filmes. De mais chamativo temos:
O Despertar das Tartarugas Ninja: O Filme (5), nova animação baseada no grupo de heróis;
Dupla Jornada (12), mais um filme de ação de Jamie Foxx pra plataforma;
e De Férias da Família (26), comédia que reúne Mark Whalberg com Kevin Hart.
Fora isso, vale o destaque ao nacional TOC – Transtornada, Obsessiva, Compulsiva, que já entrou no catálogo.
O que ando fazendo
Escrevi sobre DC Liga dos Superpets na Folha;
Escrevi sobre Crimes do Futuro e O Telefone Preto no Medium;
Participei do Braincast sobre a San Diego Comic-Con deste ano;
Gravei episódios do Cinemático sobre Thor: Amor e Trovão, Elvis, O Telefone Preto, Agente Oculto e Crimes do Futuro, além das séries Ms. Marvel e Irma Vep. Tudo disponível nos melhores agregadores de podcast.