O caminho escolhido
"Matéria Escura", criada por Blake Crouch; e "Grandes Hits", de Ned Benson
As escolhas que fazemos não definem as nossas vidas necessariamente, mas a ficção científica gosta de pensar assim às vezes. Afinal, se um aparelho permitisse à pessoa desfazer os erros cometidos, quem resistiria ao convite? O dispositivo dessas premissas é bastante sedutor, por mais determinista que ele seja, e esbarra em questões que atormentam a qualquer um no planeta.
O tema pelo visto está na moda. Nos últimos meses, essa premissa ganhou vida com o filme “Grandes Hits” e a série “Matéria Escura”, que o exploram de formas parecidas.
As duas produções são bem diferentes, inclusive naquilo que move os personagens no desejo de mudar o destino conferido. Mas ambas brincam com a possibilidade do “e se?” por uma via muito específica, envolvendo uma correção de rumo e o choque de mundos. A vida privada, tão simples na teoria, se revela bem mais complexa diante da minúscula ideia de mudança.
O mecanismo da ficção científica também é diferente para cada obra. Em “Grandes Hits”, a trama brinca com viagem no tempo. No filme, acompanhamos uma mulher que visita o passado ao ouvir música, uma maldição que se instala depois da morte do amado. Todos os retornos se baseiam em épocas do relacionamento dos dois, com músicas específicas do namoro engatilhando cada uma das viagens.
Já “Matéria Escura” envolve o multiverso, tese científica do momento em Hollywood, e um sequestro. A série foca em Jason, um professor de física que de repente se vê abduzido para outra realidade por uma variante sua, que toma o seu lugar. Tudo acontece porque o autor da troca se arrepende de abandonar a vida em família pelo trabalho, na qual ele foi muito bem sucedido —e onde deixa o Jason raptado. Invenção do sequestrador, o programa tem ao centro uma caixa capaz de navegar por diferentes universos, o que instiga Jason a refazer os seus passos com os próprios pés.
O ímpeto desse outro Jason —apelidado de Jason2 no seriado— não é muito diferente dos lamentos de Harriet. O filme dirigido por Ned Benson já começa dois anos após o acidente de carro que matou o namorado, mas ela segue acorrentada ao luto. A garota ainda frequenta um grupo de apoio e anda sempre com o fone de ouvido, que toca canções genéricas para abafar ruídos do exterior. Durante as noites, ela investiga o passado ouvindo músicas marcantes do namoro, em busca da faixa que pode impedir a tragédia que definiu a sua vida.
Ou seja, Harriet procura a mesma coisa que Jason, e entre os dois só muda a forma de mexer o ponteiro e reverter as circunstâncias de suas vidas.
A série criada por Blake Crouch estabelece com velocidade que a caixa se guia pelo emocional do passageiro para navegar o multiverso, uma decisão criativa que proporciona um cenário interessante. O viajante só acessa realidades que tangenciam de alguma forma a sua, mas as suas decisões de vida pouco importam diante do estado de espírito de quem utiliza a caixa.
Na prática, isso significa que quando Jason2 encontra o mundo de Jason, ele não procura a escolha que o separou da vida familiar, mas o sentimento de conforto e amor dessa existência, oposto à vida que leva insatisfeito. A amargura lembra muito a busca de Harriet pelo passado confortável, quando o namorado vivia, e as duas produções incorporam esse gosto dolorido ao caminho da história.
“Matéria Escura” e “Grandes Hits” dividem então a curiosidade pelas consequências do caminho escolhido, o que impõe um viés emocional. A possibilidade de voltar atrás é impossível, mesmo quando se pode refazer cenários. Esse beco sem saída ilustra o momento atual da ficção científica, que abandonou de vez a ideia do futuro para sofrer pelo passado —em especial por aquilo que está perdido.
A série leva isso além na questão da adaptação. O programa se baseia no livro homônimo escrito pelo próprio Crouch, que nas páginas explora a busca desesperada de Jason pelo seu mundo. Os episódios, por sua vez, investem boa parte do tempo em Jason2, que sofre para ocupar aquela vida pacata.
O Jason sequestrador aos poucos perde a confiança da família e a estabilidade do emprego, e volta a usar a caixa para acobertar os erros. A sua personalidade é incompatível com a de seu maior desejo, e isso cria algumas reverberações interessantes —que a série às vezes explora, às vezes não.
A maldição de Harriet também é levada ao limite aos poucos quando conhece David, um membro novo do seu grupo de apoio. Os dois se apaixonam, mas o trauma dela logo se impõe como obstáculo, dessa vez literalmente.
No filme, o diretor Ned Benson brinca com essa noção dos momentos definidos por elementos específicos, incluindo a música. Em uma cena, a protagonista leva um choque ao voltar no tempo durante um amasso com o novo pretendente, justo porque a canção que ouvem no momento diz respeito ao passado dela. A partir daqui, cuidado, o texto discute spoilers do filme e da série.
A forma que Harriet encontra para resolver o seu problema é anular por completo aquela existência —incluindo a causa. Ela viaja no passado até o momento em que conhece o primeiro namorado e desfaz o início da relação. A dor do amor perdido é tamanha que bloqueia toda a vida dela que acontece após a tragédia, então ela opta por outro caminho em definitivo. A aposta fica evidente na hora da decisão: mesmo sem a memória de David, ela espera encontrá-lo na nova realidade.
Um desfecho para lá de cruel, sem dúvida, que é igualado em algum nível pelo de “Matéria Escura”. Quando o Jason original enfim retorna ao seu universo, milhares de variantes suas criadas durante a sua jornada na caixa também encontram a realidade de sua família. Por consequência, milhares de Jasons reivindicam o lugar com a esposa e o filho assumidos por Jason2, o que torna impraticável a vida naquele mundo para todos os envolvidos.
Mas o mais importante é que o próprio Jason2 também termina a história arrependido da decisão em mudar a sua escolha. A série tem um desfecho mais cruel em relação ao do livro, que só mata a variante original. Nos episódios, Jason2 termina vivo, mas abrindo mão de vez da realidade que escolheu raptar, sem caminho para onde ir.
O que nos devolve de novo ao lado determinista de ambas as histórias, que ressaltam como as escolhas definem quem somos. O passo falso explica o cerne mais fraco das tramas, que ora ou outra não dão conta das questões que sugerem. Mas o viés emocional desses rumos alternados, forçados a fórceps por personagens nem tão conscientes do impacto de suas escolhas, mantém o interesse.
Escolhas não definem as nossas identidades, mas nossos sentimentos ajudam a formar o que pensamos de certos momentos. A humanidade é tão complexa quanto o espectro emocional, e o barato de “Grandes Hits” e “Matéria Escura” está em atestar isso como uma qualidade em si.
“Matéria Escura” está no Apple TV+. “Grandes Hits” está no Disney+.
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Fica a dica: Spermworld, de Lance Oppenheim
Já que estamos falando de caminhos traçados e decisões duras, acho que vale resgatar esse documentário que saiu em silêncio há alguns meses. O filme envolve o relato de quatro doares de esperma nos Estados Unidos que operam de forma independente —além do sistema de saúde, grupos de Facebook são alimentados por pessoas que fornecem e buscam os itens necessários para a gravidez. A produção tem empatia por essas pessoas, mas aos poucos a câmera de Lance Oppenheim vai achando pequenas discrepâncias que tornam essas figuras em mais excêntricas do que dão a entender. O gesto nobre sempre é muito bonito, mas o que esses doares fazem com essa posição a partir disso é bizarro e um tanto divertido. A galeria é fantástica, do senhor de idade buscando o amor nesses grupos ao homem que não para de ajudar na concepção de vida alheia porque foge da sua. A narrativa etérea torna “Spermworld” em um filme mais mirabolante do que ele é na realidade, mas fica difícil terminar a sessão sem se sentir perturbado —ainda que com umas boas risadas no meio do caminho.
Onde? No Disney+.