As palavras Los Angeles e a sua abreviatura, LA, apontam para o mesmo ponto em qualquer mapa. Mas elas também significam coisas diferentes para os habitantes de lá. Los Angeles, por exemplo, é a cidade ao sul do estado americano da Califórnia, um lugar construído de bairros e rodovias como qualquer outra metrópole do planeta.
Já LA, com as suas duas letras, se trata de um lugar inventado. Suas duas letras batizam uma mística que permeia o mesmo espaço cenográfico, feito por terceiros para substituir as pessoas por imagens.
Essa separação é explicada logo no começo do filme “Los Angeles por Ela Mesma”, de Thom Andersen, e delineia os parâmetros de uma busca que não terá fim. LA existe para engolir Los Angeles em símbolos, conforme a cidade, sede de Hollywood, é desde sempre uma das mais fotografadas no planeta. Depois de décadas sob este regime, que em silêncio molda os espaços ao bel prazer, a questão que se impõe é se a metrópole ainda existe dentro do próprio simulacro.
Não há uma resposta para a pergunta, mas a dissonância entre o real e a construção que cerca Los Angeles, LA e (por que não?) Hollywood ainda dá um bom ponto de partida para se entender a cidade. Por ser uma das regiões mais registradas, afinal, a metrópole é também um lugar onde imagem e poder se confundem com frequência.
O documentário de Andersen, feito há 21 anos, começa desse ponto. Um ensaio de quase três horas de duração, ele conduz uma ampla investigação de Los Angeles enquanto imagem de LA. A cidade se tornou o fundo de cena da indústria de cinema mais poderosa do globo apenas por conveniência —para os estúdios, é mais barato filmar no quintal de casa do que fora dele. Os seus espaços foram apropriados e remodelados, e mesmo a identificação como Los Angeles demorou a ser feita pelos filmes concebidos lá.
Para tanto, Andersen toma um percurso que tem por norte a representação. Ele parte da instrumentalização da cidade como mero registro cenográfico para chegar nos filmes da LA Rebellion, movimento que considera o mais próximo possível da verdadeira Los Angeles e de seus cidadãos. No caminho, ele revela diferentes faces e usos da região, de casas a bairros, bem como as forças que buscam se impor sobre aqueles cenários.
A narrativa é toda muito sutil, construída com cuidado pela narração do diretor e a grande colcha de retalhos de filmes selecionados por ele. Nada é deixado por acaso também. Andersen entende toda e qualquer manipulação como uma violação da cidade, mesmo ao reconhecer os prazeres despertados nesse processo pelos realizadores, e para tanto busca elencar ao espectador a equação completa dessa mineração de Los Angeles para LA.
Então ele primeiro mostra as principais casas e pontos turísticos da cidade, delineando a evolução da indústria na cidade a partir dos significados daqueles espaços nos filmes. Depois, o documentário faz o registro gradual de Los Angeles dentro dos filmes, deixando de ser uma mera cidade sem nome para se tornar um lugar reconhecível ao olho comum. Andersen ainda fará as suas elaborações sobre a visão que a cidade tem por diretores americanos e estrangeiros antes de chegar na transformação da metrópole como tema cinematográfico de filmes como “Chinatown” e “Los Angeles - Cidade Proibida”. Por fim, há a ocupação do espaço pelos poderes locais, no registro de uma polícia que aos poucos deixa de ser uma ameaça fatal para se esfarelar frente às tensões históricas —sobretudo diante do assassinato de Rodney King.
Como se pode ver, um panorama bastante completo, que entende a cidade a partir de sua representação. Os detalhes tornam tudo ainda mais especial, sobretudo pela sagacidade do cineasta diante dos caminhos da própria investigação.
Na primeira hora, por exemplo, o olhar arquitetônico de Andersen se impõe na avaliação de endereços como o Bradbury Building ou a Ennis House. São dois exemplos de construções atípicas, com fins muito particulares pensados por seus criadores, mas que no cinema são reinventadas para os fins mais diversos.
Uma mansão inspirada na cultura asteca como a Ennis, por exemplo, vira na mão do cinema em uma mansão de um bilionário excêntrico vivido por Vincent Price, na casa futurista de um caçador de androides, na central de pesquisa de um cientista louco e até no palco de um clipe de Ricky Martin. Tudo isso sempre pelo lado de fora pelo menos. Seus interiores são eviscerados de acordo com a ocasião, substituídos por sets pensados em outros lugares e com propostas arquitetônicas bizarramente opostas à de seu exterior.
Se a arquitetura de uma casa pode ser inteira repensada na tela do cinema por mero capricho, o que dizer então de uma cidade? Essa perversidade habita o cerne das discussões de “Los Angeles por Ela Mesma”. O mais interessante, porém, é como essa perversão também diz respeito à identidade da metrópole, exposta por Andersen como uma região dominada pelo mais forte.
Basta observar os filmes entendidos como primordiais de Los Angeles. Seja “Chinatown” nos anos 1970, “Blade Runner” nos 1980 ou “Los Angeles - Cidade Proibida” nos 1990, cada década tem uma obra prima sobre a cidade que a corresponde a um lugar de corrupção e nostalgia. Os dois elementos aparecem sempre correlacionados, como bem aponta o documentário, em uma mistura que aponta a cidade para um conformismo maldito —mudanças são impensáveis porque LA, desde a sua fundação, está condenada a aquele status.
Esse tipo de reflexão é o que torna “Los Angeles por Ela Mesma” tão essencial, indo além dos tempos em que foi pensado como documentário. Finalizado em 2003, o filme nasceu ainda no contexto da virada do século e da passagem dos primeiros 100 do cinema. Isso está claro na decisão de Andersen por encerrar a narrativa na LA Rebellion, uma periferia então (e ainda) pouco lembrada na história geral da arte por fugir dos ditames do poder vigente de Hollywood. Naquele momento, como agora e mais do que nunca, a pergunta que se fazia era o que diabos estava sendo deixado de lado quando o assunto era a história e os cânones.
Mas o mais curioso disso é que, passados 21 anos, as constatações do documentário parecem se expandir para a cidade agora também como uma questão em si mesma. Se a gentrificação se consolidou na Los Angeles contemporânea como um puxa e repuxa entre o passado carcomido e o futuro inevitável proposto pelo mercado, os filmes da última década acompanham a sua movimentação dentro do mesmo conjunto de valores citados por Andersen em seu filme.
A nostalgia, por exemplo, se imprime com maior fervor no registro de obras como “Era Uma Vez em… Hollywood” e “La La Land”, que olham o passado em busca de alguma conciliação com o presente. A corrupção, por sua vez, ficou mais difusa e incompreensível ao olhar no curso de filmes como “O Mistério de Silver Lake” e “Ambulância”, que enxergam a destruição dos espaços como a mesma raiz de um mal maior —mesmo que eles difiram sobre o que seria este mal.
Thom Andersen não poderia ter previsto nada disso duas décadas atrás. Mas o legado de “Los Angeles por Ela Mesma” continua intacto exatamente porque essas questões ainda dizem respeito à cidade que observava pelas telas no ano de 2003. O seu mérito também não está ligado ao fato de Los Angeles ser uma cidade imobilizada pelo estado das coisas, mas ao olhar renovado e treinado que propunha à passagem do tempo. A tal marca dos grandes documentários, portanto, que ultrapassa as urgências do seu tempo para propor algo mais profundo e crucial.
“Los Angeles por Ela Mesma” está disponível na Mubi.
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Fica a dica: Let It Be, de Michael Lindsay-Hogg
Ainda em lição de história maldita, merece alguma atenção o documentário dos Beatles que chegou essa semana na plataforma de streaming da Disney. A Apple Corps no momento vive uma era de extravagância de produzir e distribuir qualquer coisa relacionada ao quarteto de Liverpool, mas por quase 50 anos escondeu essa gema do documentário dirigida por Michael Lindsay-Hogg sobre os bastidores da gravação de “Let It Be”. O filme perdeu a suposta malignidade depois que Peter Jackson usou todas as dezenas de horas do material coletado pelo documentarista para “Get Back”, a versão agora entendida como “oficial” daquele momento, mas o volume de horas da minissérie nunca fará justiça ao que Lindsay-Hogg conseguiu em uma hora e vinte minutos: um registro preciso das tensões que moviam a banda em seus últimos momentos. Não é à toa que Paul McCartney fez questão de enterrar o material por tanto tempo, o que talvez seja o maior elogio a uma obra em tempos de tanto acesso e pouco olhar.
Onde? No Disney+.