A ideia por trás de “Guerra Civil” é muito diferente da premissa que envolve o filme, o que pode chocar a alguns. A ideia é o que a publicidade divulga aos quatro ventos, um futuro próximo no qual os Estados Unidos passam por um novo conflito armado. Os minutos iniciais mostram estados como a Califórnia e o Texas batendo de frente com o presidente, que por sua vez berra palavras de ordem na televisão.
A premissa do filme, enquanto isso, está nos arredores, escolhendo de protagonistas os jornalistas e fotojornalistas que cobrem a guerra. O conflito está em seus últimos dias, com o chefe do executivo acuado em Washington e um rumor de que as tropas adversárias marcharão na capital. É uma corrida contra o tempo para a imprensa, portanto, ávida por uma entrevista final do presidente.
Mas os interesses entre as partes da guerra e os interesses dos jornalistas são coisas diferentes, mesmo quando alinhadas. A ideia e a premissa de “Guerra Civil” idem. Elas atravessam uma a outra no curso da narrativa, que a partir daí existe na base da sugestão. Este terceiro campo, o da dúvida, é onde o filme de Alex Garland se aventura.
Para isso, o diretor propõe uma travessia. Em meio aos boatos, um jornalista da Reuters, Joel (Wagner Moura), e uma famosa fotojornalista, Lee (Kirsten Dunst), caem na estrada para a capital. O objetivo, difícil, é falar com o presidente, e não ajuda ter no carro um veterano da imprensa (Stephen McKinley Henderson) e uma fotógrafa novata (Cailee Spaeny). Mas o furo chama, sempre, e os dois podem ser úteis no caminho —isso pelo menos aos olhos de Joel, sempre na adrenalina da notícia.
O filme, então, nasce nas cercanias e navega em direção ao conflito. Sem o devido contexto da guerra, o espectador é igualado ao olhar dos jornalistas sobre as idas e vindas do confronto. As incertezas logo se acumulam e tornam o percurso ainda mais perigoso, com situações insólitas e o risco de vida aumentando a cada quilômetro. Nesse caminho, o filme de Garland prossegue na dúvida —como registrar os eventos quando não sabemos o que eles representam no grande quadro?
Uma limitação que se impõe nesse questionamento é o destino do material registrado pelo grupo —ou seja, o produto das fotos e reportagens. Essa parte não interessa a Garland, que inventa impedimentos técnicos como a da câmera analógica da aprendiz e do wi-fi fraco do hotel. O que está em jogo mesmo são os jornalistas dentro da guerra, testando os seus limites na busca de algo que não é exatamente material.
Muito disso se desenrola na relação da novata, Jessie, com os veteranos, em especial Lee. As duas são fotógrafas e, portanto, registram de maneira direta a guerra em andamento. Jessie é fã confessa de Lee, uma espécie de prodígio envelhecido da área que também anda exausta das circunstâncias. Como Jessie, logo entendemos através de Lee que tudo é questão de perspectiva, sobretudo de como vender isso ao espectador.
O que é uma sugestão interessante, ainda que o filme termine preso ao jogo. Afora as fotos tiradas por Jessie, sempre em preto e branco e com Joel no meio dos tiroteios, “Guerra Civil” investe pouco nos pormenores profissionais dos personagens. A travessia do grupo tampouco intriga no andamento. A exceção acontece no começo, quando a pouca gasolina do carro leva os personagens a um lugar tenebroso de tortura.
Resta então a guerra, que se manifestará apenas no clímax. Até lá, a produção dilui a sua aparição em doses ritmadas, que aumentam a cada novo encontro dos jornalistas com os soldados. Esses momentos são o que mantém o filme em movimento, bem como o comportamento das fotógrafas —sempre andando agachadas, desviando de balas, à procura da sobrevivência e do melhor ângulo para, quem sabe, uma boa foto.
Essas cenas variam em efeito conforme a ocasião. A tensão é alta no encontro com um oficial psicótico, por exemplo, que mata aqueles que não identifica como americanos. Mas o suspense mal se manifesta em situações como a de um impasse de soldados com um atirador de elite. O curioso é que o contexto pouco importa nessas horas, assim como os jornalistas e o que pensam —o que faz saltar aos olhos a lógica pobre do filme.
O descompasso entre a guerra e a sua cobertura crava uma estaca fria no coração pulsante de “Guerra Civil”. A narrativa brinca com a sugestão para criar dúvida sobre a visão de mundo dos personagens, mas esse recurso muitas vezes está ali só pela provocação barata. O filme ora ou outra insinua um comentário com o atual momento dos americanos, mas sua abertura deixa nenhuma margem para interpretação. O público até consegue se divertir com a parte política da alegoria, mas isso pouco importa. Para a produção, o que vale é o espetáculo e a possibilidade de brincar com certos valores do mundo real.
Essa posição não chega a ser um problema, se pensada pelos dois lados da moeda —a provocação e o intuito verdadeiro. O que falta a “Guerra Civil”, mesmo, é a habilidade nesse tráfego, uma questão que recai nos interesses específicos da direção de Garland.
Alex Garland sempre foi apaixonado demais pelos conceitos que cria para pensar nos personagens que escreve. Seus quatro filmes como diretor, de “Ex Machina” a este “Guerra Civil”, chancelaram gradualmente seus vícios por alegorias tão fechadas que esquecem de tudo que as acompanham. De um jeito ou de outro, para mal ou para bem, as histórias que escreve sempre invertem valores para privilegiar uma construção maior em curso.
No caso de “Guerra Civil”, o que muda é que a alegoria da vez está inscrita na ação e, portanto, no percurso feito. A lógica falsa engana por um tempo, em especial com o tempo maior dado ao elenco para dar alguma profundidade aos seus papéis. Dunst e Spaeny fazem o máximo da lenta aproximação da veterana pela novata, que é prejudicada pelas conversas murchas e muito contextuais. Wagner Moura, até o seu personagem se render de vez ao excesso, vive com dignidade o modelo de jornalista que parece ser o sonho de Jessie —um perfil que, como tudo, se revela duvidoso.
Mas nada disso adianta quando, ao final, os personagens são reduzidos a peças de uma última e longa cutucada, um comentário ácido que busca enlaçar o filme de um último significado. O tiro sai pela culatra. Após um clímax longo, sonoro e tenso, as decisões tomadas na trama saem muito baratas, ainda mais diante de uma traição que o filme comete contra si mesmo. Depois de duas horas, os personagens voltam à suas condições de peças da engrenagem. Com isso, a narrativa sai perdendo —e, com ela, o público.
“Guerra Civil” está nos cinemas.
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Fica a dica: No Mundo da Lua, de Robert Mulligan
Robert Mulligan entrou para a história quando dirigiu a adaptação de “O Sol É para Todos” para os cinemas nos anos 1960, com Gregory Peck no elenco. Mas o diretor seguiu trabalhando pelas próximas três décadas, lançando em 1991 um último projeto com uma iniciante Reese Witherspoon no papel principal. O filme, “No Mundo da Lua”, tem um quê de crônica idílica da América rural ao acompanhar uma garota que se apaixona pelo garoto que mora na propriedade vizinha. A trama é feita em cima desse amadurecimento, com a reviravolta do garoto se engraçar com a irmã da menina, mas o que está em jogo é o primeiro contato com a vida fora dos confins da infância. A sutileza dos gestos faz o filme, em especial por causa da jovem Witherspoon, que já mostra talento mesmo nas restrições naturais da idade —aquela habilidade de transformar crueza em valor que é natural detectar nos bons artistas mirins.
Onde? No Prime Video.