Diário da Mostra #1: O sonho acabou, mas tem pão doce
"Anora", de Sean Baker; "É Apenas um Adeus", de Guillaume Brac; e "O Vento Sopra Através dos Túmulos", de Travis Wilkerson
Anora entrega tudo o que você precisa saber sobre ele ainda nos primeiros minutos, quando a protagonista Ani conhece Vanya. Stripper de uma casa de shows para adultos, a moça é escolhida para atender o menino porque só ela entre as garotas entende russo, o que ele prefere na comunicação. Mas Ani também não fala muito bem a língua, o que transforma o primeiro encontro dos dois em uma torre de babel —ela ouve russo e responde em inglês, enquanto ele fala russo e escuta inglês.
Esse detalhe da comunicação dos dois importa porque por ele o filme revela do início que a relação tem uma questão de má tradução. Isso acontece de forma muito sutil, ainda mais se considerar que Any e Vanya vivem tempos de amor na primeira hora da história. Eles começam com uma sessão privê de strip, com direito a rebolada dela sem calcinha porque achou ele muito simpático. Depois, o garoto pede para a stripper pular o trabalho e acompanhá-lo na festa de Ano Novo. De repente, os pombinhos passaram uma semana de libertinagem em Las Vegas e decidiram se casar, no susto e às pressas.
No caminho, Vanya eventualmente arrisca o inglês e Ani é convencida pelo moço a “hablar” o russo. Mas os erros de tradução seguem ali, intactos na estranha evolução do romance e nas expectativas cada vez mais irreais da dupla. Vanya se revela filho de um poderoso mafioso russo, com página no Google e tudo, e Ani larga o trabalho de stripper para viver a vida de esposa de bilionário. Com o casório, ele obtém um green card para se livrar da família, enquanto ela consegue o milagre de entrar para o mundo dos ricaços.
Ou seja, o relacionamento está mais para um tratado de vantagens que uma paixão. Mas por um tempo o casal se ilude, e o filme vai junto na crença de que aquele amor é para valer. Até porque passa-se muito tempo vendo os dois jovens se amando e se comendo —mesmo que muito mal, com a stripper ficando frustrada uma hora do boy magia só transar às pressas, como um coelho no cio.
Reparem como o “lost in translation” acontece até na hora do gozo. O casal ignora isso, mas a situação logo chega à família de Vanya, que recebe mal a notícia de que o herdeiro festeiro casou com uma prostituta —o que é muito diferente de uma stripper, mas para eles significa a mesma desonra. Os pais decidem viajar aos Estados Unidos e o menino, desesperado com a notícia, foge de casa. Já Ani fica para trás e tem que resolver sozinha a bagunça com os capangas enviados pelos familiares. O caos se instaura na mansão, que descobrimos que nem é de Vanya, e exigências são trocadas à base de insultos e pontapés —enquanto os capangas querem que a dupla anule o casamento, ela acredita no amor pelo fujão e insiste em manter o matrimônio.
Então a metade final de “Anora” vira a água no chope dos sonhos do casal, em especial no caneco da garota. Depois da poesia juvenil da primeira parte, o filme se transforma em uma comédia maluca das mais engraçadas, na qual Ani e os mafiosos se estapeiam enquanto buscam Vanya pelas ruas, clubes e docas de Nova York. A impressão que fica é de que se assiste um drama dos anos 1970 —no olhar contrabandista da cidade— filtrado pelas sensibilidades contemporâneas, guiado ainda pelo timing cômico da Hollywood dos anos 1940 e 1950. Esse último de vez em quando lembra as peripécias de Howard Hawks, muitas vezes as trapalhadas espirituosas de Preston Sturges.
Tudo isso parece o caminho natural da carreira do diretor Sean Baker. Pelo menos desde “Tangerina”, ele ergue um cinema voltado aos americanos marginalizados, que abraça as limitações orçamentárias da produção independente como questão de princípio, para chegar junto de grupos assim. Mas em meio a um registro tão humanizado, Baker também se abriu aos poucos para as possibilidades do filme de gênero, ampliando o escopo e o holofote sobre os seus personagens.
“Anora” é o primeiro candidato sério a obra-prima de seu diretor por essas razões, ainda que o tempo possa dar maior razão a “Red Rocket”. O passo importante aqui é que Baker toma cuidado extra com a protagonista Ani, que insiste em seu sonho até onde é possível. Mesmo depois de abrir os olhos para o seu engano com Vanya, ela ainda busca a chance de concretizar o seu sonho de bonança, o que aos poucos será demolido de forma cruel pelos russos. Na malícia espirituosa, Ani também leva uma ingenuidade que corre risco sério de partir ao meio, mesmo depois de passar um tempo trabalhando nos clubes noturnos.
A atuação magnífica de Mikey Madison como a personagem concretiza esse caminho, que demole as críticas ao filme. Escolhido Palma de Ouro, “Anora” incomodou parte da imprensa por ser uma produção de gênero americana —como a presidente do júri, Greta Gerwig— ao invés de uma obra pautada em questões sérias ou urgentes. Ledo engano. Pela jornada de uma stripper, o filme reforça que o sonho americano não é uma questão de ilusão, mas de quem o vive de fato. Como dói essa conclusão.
Na Mostra: 19/10, às 21h10 no Reserva Cultural; 21/10, às 20h45 no CineSesc; 25/10, às 20h50 na área externa da Cinemateca Brasileira; e 29/10, às18h40 no Espaço de Cinema.
Sonhos também dão o tom de É Apenas um Adeus, mas por questão de tempo. O documentário acompanha os últimos dias de uma turma de estudantes de um internato na França, dividido nos relatos de quatro garotas —Aurore, Nours, Jeanne e Diane. Elas nunca aparecem falando para a câmera. Surgem entre os amigos, o que dificulta a identificação imediata, e o filme acontece nesse anonimato coletivo.
Aí vale o contexto de que o filme é o novo trabalho de Guillaume Brac, diretor francês já incensado pela Cahiers du Cinema em duas ocasiões e que qualquer dia desses estoura no tal “mainstream”. Essa informação importa porque quem chega agora deve ficar bem confuso com a obra, que impõe um registro tenro e concatenado daqueles adolescentes. Os 70 minutos passam muito rápido nas aflições juvenis, narradas enquanto os grupos se divertem em dias ensolarados, no campo ou nos corredores da escola.
Esse tipo de filme não é inédito a Brac, mas “É Apenas um Adeus” tem sua cota de testes de tensão dentro da filmografia do diretor. Primeiro que a decisão por focar jovens dessa idade tem algo de inédito em seu trabalho no gênero. Os outros documentários de Brac envolveram adultos (“Rest for the Braves”), crianças e adolescentes de todas as idades (o muito elogiado “Treasure Island”) e pré-adolescentes (o anterior “Linda and Irina”).
Nisso, o limite mais interessante é que o perfil dos entrevistados bota uma baita nuvem cinza no cenário solar típico dos filmes de Brac. Ele gosta de equilibrar o drama em tons leves, mas os jovens da vez não poderiam estar mais desgraçados da cabeça. O temor com o fim da vida no internato se mistura às preocupações clássicas com o mundo —como o aquecimento global—, e as duas coisas se desenrolam aos poucos nas brincadeiras e nos trabalhos.
Em um momento, a prova oral com o professor traz à tona um jovem tímido; em outro, o rap sobre a vida e obra de Freud faz rir pela petulância. De repente algumas garotas discutem mais seriamente no dormitório, abatidas com o fim da convivência diária. Ali no fim, um menino cheio de dreads resolve cortar todos os fios, querendo começar do zero a nova fase da vida —o que desperta o pânico e a diversão dos amigos, que adoram o seu estilo e se encarregam de cortar os cachos desidratados.
Sinto aí falta dos sonhos perante o excesso de realidade, o que acho divertido no lado juvenil desse balanço tão esquisito. O documentário ora ou outra posa de banal, com uma organização tão quadrada e ordenada pelas entrevistas —uma característica diferente dos outros documentários de Brac, mais pautados pela observação.
Mas a tensão está ali, registrada pela câmera e sempre atrás de algum alívio, o que eventualmente acontece. Até porque a despedida é apenas de um espaço, o que aqueles jovens só vão perceber depois, quando se encontram nas ruas.
Por agora, “É Apenas um Adeus” me parece o fim de uma trilogia de Brac sobre a juventude francesa. A série começa nas férias em espaço público de “Treasure Island” e passa pelas brigas de “Linda and Irina”, um curta-metragem sobre duas crianças que —vejam só— também sofrem com o fim de uma convivência. Os três filmes giram de maneiras diferentes sobre o mesmo ponto: a juventude vive atiçada em torno dos próprios apocalipses, mas estes momentos falam muito mais sobre o comportamento humano. O melhor de tudo é que Brac filma a intimidade do jovem como poucos. Assusta a abertura do testemunho das garotas, bem como a leveza dos momentos filmados.
Na Mostra: 18/10, às 15h50 na área externa da Cinemateca Brasileira; 22/10, às 22h15 no Espaço de Cinema; 23/10, às 16h10 no Kinoplex Itaim; e 30/10, às 19h30 no CCSP.
A situação da antiga Iugoslávia e do leste europeu como um todo parece tão perdida que os filmes que pipocam nos festivais sobre os países de lá ressoam um mesmo sentimento de terra maldita. Comédia parece a válvula de escape da região, que une as diferentes populações de lá em torno da própria miséria, corrupção e degradação. Os vizinhos romenos que o digam; Radu Jude já há alguns anos filma a torto e direito as mazelas nacionais com lábia visual feroz.
O Vento Sopra Através dos Túmulos segue essa toada à risca, em especial pelo humor cáustico. O filme tem direção de um estrangeiro, o americano Travis Wilkerson, que passou alguns meses morando na Croácia com a família. Ele também reconhece o seu lugar de fala naquele espaço. Ainda no começo do longa, Wilkerson avisa ao público que o país odeia turistas, que são tratados como uma grande aberração a ser violada.
Isso é só a ponta do iceberg em um país pouco agradável. O documentário avança em capítulos pela história da Croácia após o fim da Segunda Guerra Mundial, equilibrado entre as pesquisas do diretor e as entrevistas que fez com um detetive policial, Ivan. O oficial investiga as mortes de quatro turistas, mas os casos ficam mais bizarros e distantes da solução conforme o tempo passa. O chefe de Ivan o despreza, enterrando-o em burocracia, e as provas se perdem —incluindo uma lança, usada em uma das vítimas em uma das locações da série “Game of Thrones”.
O curioso é que essa história acaba sendo a mais fraca do filme, que chama a atenção mesmo nas aventuras de Wilkerson no país. O documentarista não é o Jude, mas conta em detalhes como o país foi da resistência histórica ao fascismo de Hitler e Mussolini para abraçar a extrema-direita nos tempos de hoje. A crise ideológica croata acontece no filme não por história política, mas cultural. Assuntos simples e cotidianos, como o clube de futebol Hajduk Split, viram prato cheio para denotar o quanto a população abraça o nazismo graças à rebarba da derrota estrutural de sua sociedade.
Nesse ponto “O Vento Sopra Através dos Túmulos” sabe ser pesado, economizando pouco nos golpes na barriga da audiência. O humor aparece para contrapor à desgraça. A causticidade é tamanha que lá pelas tantas Wilkerson fala de como as bad vibes croatas afetam ele a sua família, criando risadas amargas nas soluções banais que inventa para contornar o clima ruim. Coisa de adotar um cachorro porque ele não sabe explicar às filhas o porquê dos croatas terem orgulho de um lugar no país que serviu de campo de concentração focado em crianças.
O filme vira uma sessão difícil, mesmo em meio às risadas, mas pelo menos chega ao fim. Como Wilkerson, que se muda da Croácia graças ao trabalho da esposa, o público pelo menos pode se reconfortar com a ideia de que aquela realidade está geograficamente distante. Os mais aventureiros não hesitarão em traçar paralelos com a realidade brasileira, em análises que provavelmente estão certas. Pelo menos fica o incômodo, mas o turismo também está aí para providenciar pesadelos.
Pelo menos, pelo menos, pelo menos… o jogo segue, intacto e sem futuro.
Na Mostra: 17/10, às 19h30 no Cineclube Cortina; 19/10, às 17h50 na Cinemateca Brasileira; e 28/10, às 19h20 no Cinesystem Frei Caneca.