Desilusões ao luar
"Jurassic World: Recomeço", de Gareth Edwards; e "Hot Milk", de Rebecca Lenkiewicz
Em que momento do mundo matar um dinossauro virou pecado? A questão vem à tona ainda no começo de “Jurassic World: Recomeço” e chega quase como um tapa na cara do espectador mais atento. Na história, o cientista vivido por Jonathan Bailey se revolta ao ver que um dos mercenários da equipe liderada por Scarlett Johansson está encarregado de proteger o grupo dos animais com armas letais.
Até aí tudo em ordem, ninguém quer ver os bichinhos assassinados por ex-militares —o contrário é muito bem vindo, claro. Mas o mesmo pesquisador apela ao moralismo cristão para retrucar o soldado e encerrar a discussão. “Seria um pecado”, responde com o cenho franzido e voz determinada.
Eu não acho e não quero que “Jurassic Park” seja um ensaio imenso sobre o ateísmo, e duvido que o fantasma de Michael Crichton volte para caçar os envolvidos pelo diálogo no filme. Mas a cena é um tanto engraçada para uma série de filmes que usam a ciência como um parque de diversões temático de dinossauros. No escurinho do cinema, parece que a fala escapou na revisão do roteiro. David Koepp, escriba do original dirigido por Steven Spielberg e autor da trama deste “Recomeço”, pode muito bem ter esquecido a fala na revisão —ele mirava o ceticismo filosófico e acertou uma religiosidade acidental, talvez.
A situação de um roteiro aprontado às pressas parece absurda, mas faz sentido até demais no contexto deste sétimo filme. Este novo “Jurassic World” entrou em produção exatamente um ano antes da estreia, com o diretor, Gareth Edwards, contratado quatro meses antes das filmagens. Na imprensa especializada, o discurso é de que o projeto nasceu das mãos do próprio Spielberg, que recrutou Koepp logo após o desastre nuclear do filme anterior, “Domínio”.
Ninguém sabe explicar a pressa para o lançamento, mas a correria transparece no longa e não pega muito bem. Tudo bem que o primeiro “Jurassic Park” foi a revolução dos efeitos visuais digitais, mas “Recomeço” leva esta equação ao limite da pior forma. Os dinossauros e os humanos parecem existir em planos distintos da mesma cena, o que diminui a zero o suspense da trama.
A sensação é de que Edwards, cineasta craque do departamento de efeitos e experiente com orçamentos menores, corta caminho por conta da agenda apertada. Sem muito tempo para o mínimo de truques práticos, ele brinca o tempo todo com as camadas do plano, escancarando a perspectiva da câmera.
Cenas com objetos que ocultam a visão do público sobre situações tensas se multiplicam aqui. De repente um bote salva-vidas infla e esconde o T-Rex que desperta, ou um helicóptero se perde na imagem pela neblina; até um espinossauro, visto ao fundo e camuflado, de repente se esconde do público por trás de um carregamento militar, na pior hora possível para um personagem. A jogada é boa, diverte nesses momentos pontuais e me lembrou as cenas com duplos de “De Volta para o Futuro 2”, mas não leva a algo. Aos poucos, a gente percebe que a manobra é a única carta na manga do diretor para navegar pelas circunstâncias do projeto.
O filme todo vai nessa toada. Em termos de história, “Recomeço” sofre o tempo todo para equilibrar duas tramas paralelas na mesma ilha, um dos últimos abrigos dos dinossauros. De um lado, acompanhamos os personagens de Johansson e Bailey, que buscam o sangue de espécies imensas, que ajudaria a fabricar um remédio contra doenças cardíacas. Do outro, um pai de família luta para proteger as duas filhas e o enteado das criaturas na região. Os dois núcleos demoram quase uma hora de filme para se unir e logo em seguida se dividem de novo; o público sente a burocracia a cada novo passo dos dois grupos, e o caminho tem dinossauros suficientes aparecendo a torto e a direito.
O interessante é que os dinossauros a certa altura saem de cena para dar lugar a criaturas mutantes e mais ameaçadoras. Elas não são muito diferentes das aberrações genéticas da primeira trilogia de “Jurassic World”, mas o filme vende a manobra como algo inédito. A inércia da continuação é tão grande nessa hora quanto o sentimento de beco sem saída da franquia —e o pior de tudo é que a régua está tão baixa que o aborrecimento deste capítulo parece produtivo perto dos anteriores. O recomeço tem cara de fim de linha.
“Jurassic World: Recomeço” está nos cinemas.
Sofia, a protagonista de “Hot Milk”, também está encurralada na vida. Ela cuida da mãe, Rose, que agoniza há anos com um caso estranho de paralisia nas pernas e busca um tratamento que alivie as suas dores. A procura leva as duas a uma cidade costeira na Grécia, onde um médico extravagante (e careiro) promete uma solução ao quadro.
Apesar do sofrimento de Rose, quem chama a atenção no filme é Sofia. A menina vive sob a corujice materna, que vive imersa nos sintomas de sua doença e nos ressentimentos do passado. O clássico: não confie nos homens, o seu pai é um mentiroso, ninguém entende a gente… a mãe é um poço de ojeriza a qualquer um além de sua filha, que equilibra a rotina de cuidados médicos com os estudos do seu curso de antropologia.
A dinâmica das duas dá o tom na trama tecida pela diretora Rebecca Lenkiewicz e logo esbarra no amadurecimento da protagonista. A mistura ensaia perigo, até porque Sofia se vê atraída por uma mulher mais velha, a extrovertida e muito zen Ingrid, que corresponde o desejo. As duas mulheres, Ingrid e Rose, não entram em conflito pela menina, mas esta de repente se vê em um turbilhão de emoções um tanto inexplicável.
“Hot Milk” então se revela um “coming of age” no formato de um cabo de guerra. Sofia passa por uma espécie de despertar sexual tardio que choca com o seu mundo de responsabilidades. Ela de repente percebe a própria posição e vontades, mas ainda precisa cuidar de sua mãe. O mais interessante é que a sua crise vem menos da presença de Ingrid que da relação com Rose, posta em xeque pelas demandas do novo tratamento.
O filme é instigante, mas os meandros da história aos poucos apagam a sua chama. Estreante em longas e dramaturga experiente, Lenkiewicz se perde nos simbolismos que impõe ao triângulo montado entre as três personagens. A narrativa quer uma alegoria que nunca chega na trama, e o banho-maria esfria a produção em imagens que parecem já testadas e aprovadas para o circuito de festivais.
Então de repente o filme se joga em parábolas mais óbvias, como uma envolvendo um cachorro que insiste em latir, e se prende em elementos visuais banais, como uma pipa no céu. Nos piores momentos, fica o mau sentimento de que Sofia está ali para refazer os passos de obras recentes e similares no calor mediterrâneo —de cabeça penso em “A Filha Perdida” e “Murina”, depois um tanto em “Aftersun”.
A conotação com os outros trabalhos vem fácil porque “Hot Milk” também dá voltas demais sem chegar a lugar algum. O final, impactante, é um tanto ilógico, com quê de salvaguarda para atender o público, impaciente com o ramerrame da trama.
O perdido do filme só não fica mais feio porque o trio de atrizes dirigidos por Lenkiewicz segura a barra. Emma Mackey, como Sofia, dá vazão à perturbação crescente da história, com bons anteparos na prisão construída pela Rose de Fiona Shaw e na liberdade ensaiada pela Ingrid de Vicky Krieps. Fica o lamento das três atuações existirem dentro de um vácuo.
“Hot Milk” está nos cinemas.
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